Sei que o blog se dedica a textos de cunho apartidário e manifestamente jurídico, mas um fato no mínimo curioso mais uma vez tomou de assalto a pauta, com uma reviravolta no mínimo mais curiosa ainda. Essa semana, a Câmara de Deputados, por apenas 24 votos, deixou de cassar o mandato do deputado Natan Donadon (sem partido, de RO). Não preciso nem começar a dizer o que bizarra se tornou a situação, não? Tínhamos um deputado condenado de forma irrecorrível, sentença transitada em julgado e tudo o mais, e que... continuaria sendo deputado! Estávamos diante da criação da figura inédita do "deputado presidiário", afinal, ainda que fosse recolhido para o cumprimento da reprimenda penal, ele manteria suas funções legislativas.
Art. 92 - São também efeitos da condenação:
I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública;
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
[...]
Vejamos bem, a perda do cargo eletivo não é de aplicação incondicionada: o próprio inciso I do referido artigo exige duas situações para que tal efeito possa ser verificado, e as duas são critérios temporais simples. A pena do nosso douto deputado ultrapassou com folga a previsão da lei. As razões são simples, e tais números não foram escolhidos aleatoriamente: um mandato eletivo dura quatro anos, e não haveria meios de alguém cumpri-lo se preso estivesse. A perda, no caso, era mais do que clara. Tal efeito, a bem saber, deve ser devidamente fundamentado na sentença pelo juiz.
O que raios houve então?
Os deputados, seguindo o regimento da casa e da Constituição Federal, colocaram em votação se deveria ser aplicada a perda do mandato ao deputado condenado. E aí, foi aquele espetáculo que o Brasil assistiu horrorizado: um Donadon de joelhos, agradecendo aos céus a ajuda providencial de seus amigos que evitaram sua cassação. É nesse hora que bate outra pergunta bem na têmpora: que amigos?
Não dá pra saber. Como toda votação de relevância realizada naquela casa, os votos são fechados, secretos, manifestações veladas de anonimato que se submeteram a um fim escuso. E aí me pergunto... por quê? Por que os votos têm de ser fechados?
Numa democracia representativa, o legislativo é composto por deputados escolhidos pelo povo para, em seu nome, manifestar o poder democrático, o poder que emana do próprio povo. Como eu, membro do povo, saberei que meu representante, o deputado que com sorrisos tão calorosos pediu meu voto durante a campanha eleitoral, está representando de fato o interesse coletivo? Os anseios da população? O desejo de ver os corruptos na cadeia pagando por seus erros e pela traição aviltada à confiança neles depositada? Como poderei saber se aquele doce candidato de outrora não foi um dos capangas a salvar o pescoço de um corrupto, numa votação obscura, enevoada por sombras e falsas manifestações de perplexidade?
As coisas precisam ser mais transparentes. Está passando da hora de revermos nossa política, e a política por ela fomentada.
Uma das grandes críticas aos protestos que tomaram o Brasil vinha dos manifestantes que escondiam suas caras por trás das máscaras. Hoje mesmo, a Justiça do Rio aprovou regulamento que permite a prisão de manifestantes que estiverem com os rostos cobertos. Anonimato não se aceita num estado democrático de Direito, ouvi alguém dizer num determinado ponto. Tudo bem, o voto é secreto, isso ninguém questiona, mas estamos a falar do voto que escolhe nossos representantes, não o voto que representa os anseios de uma população cansada de sofrer com as agruras da corrupção, com as mazelas da saúde, com a falta de segurança e educação, com o fantasma da inflação, e que trabalha quase cinco meses de um ano só para pagar impostos. Na hora de decidir por mim, na hora de me representar, quero saber quem é que está agindo em prol da população, e quem está agindo em nome de conchavos; quero saber quem é que está representando o povo, e quem é que está atendendo a acordos costurados em bastidores de poder. Está passando da hora de nossos políticos mostrarem abertamente a cara nas suas decisões, com a mesma descontração com que pede nossos votos.
O que houve essa semana foi um tapa na cara da sociedade. Felizmente, alguém se levantou para responder a esse acicate.
O ministro do STF Luís Roberto Barroso atendeu a um pedido do líder do PSDB na Câmara, Carlos Sampaio (SP), e suspendeu os efeitos da sessão em que o mandato do deputado Natan Donadon foi mantido. Um absurdo desse não haveria - e nem poderia - passar impune.
O fundamento foi claramente jurídico: o tempo de condenação do deputado era superior ao tempo restante de seu mandato eletivo, razão pela qual seria impossível que ele cumprisse o mesmo. Incompatibilidade pura e simples. Nas palavras do próprio Ministro, "[...] em tal situação, a perda do mandato se dá automaticamente, por força da impossibilidade jurídica e física de seu exercício".
O recado mais forte, porém, não foi o da legalidade falando mais alto, por meio de um representante de nossa mais alta Corte: o recado mais forte veio nas contundentes palavras do Ministro, que rechaçou de forma veemente o papel vergonhoso ao qual a Câmara se sujeitou:
"Pela gravidade moral e institucional de se manterem os efeitos de uma decisão política que [...] chancela a existência de um Deputado presidiário [...]. A indignação cívica, a perplexidade jurídica, o abalo às instituições e o constrangimento que tal situação gera para os Poderes constituídos legitimam a atuação imediata do Judiciário. Como consequência, suspendo os efeitos da deliberação do Plenário da Câmara"
Não há o que acrescentar nas palavras do Ministro: a indignação do povo, que deveria encontrar voz no legislativo, alcançou força no braço firme da Lei, em manifestação de outro poder, o Judiciário. Não há mais espaço para políticas de interesses, que deixam de lado o povo e só se lembra do mesmo quando precisa garimpar os votos de maneira voraz e faminta; não há mais espaço para a política visceral, que dá pão e circo, que "rouba mas faz". Não podemos crer que depois de tudo o que vimos e vivemos em 2013, as coisas não mudaram e não mudarão. Elas precisam mudar. E mudarão, nas pequenas ações de cada um de nós.
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