O conceito de meio ambiente tradicional, como conhecemos, está bem consolidado no artigo 3º da Lei n. 6.938/81, a Política Nacional do Meio Ambiente, que diz respeito ao “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Tal ideia, porém, passou por uma série de modificações – e ampliações – nos últimos anos, em razão da complexidade que o tema traz em seu bojo, saindo do campo do natural, e expandindo o conceito para outros ramos – o artificial, o cultural, e o do trabalho. O professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo, ao comentar em sua obra a definição de meio ambiente, ressalta que tal conceito se baseia em uma ideia indeterminada sob o ponto de vista jurídico, cabendo ao intérprete das leis promover sua ampla efetivação. Ou seja, diante da fluidez do assunto, é possível destacar que o meio ambiente possui um elo direto com quaisquer elementos constitutivos das relações humanas, e de essencial importância para sua existência – entre eles, a própria internet.
É sabido que desde a chegada da internet social, na virada do século XXI, temos vivido um fenômeno caracterizado como uma “sociedade da informação”, ou ainda, nas palavras de Pierre Lévy, uma “sociedade digital”, onde diferentes tecnologias da comunicação constituem a base fundamental para a integração de povos, favorecendo o trânsito de informações e o tráfego de dados em larga escala e alta velocidade. Destarte o fato de ainda haver barreiras a serem superadas no que diz respeito à democratização do acesso à rede, não se pode olvidar que a sociedade digital caracteriza uma nova forma de estabelecimento de relações sociais, com fundamento na flexibilidade e no incentivo à criação e produção de diferentes tipos de conteúdo.
Considerando que a internet evoluiu de um simples meio de comunicação para um complexo espaço de relações humanas e interações entre usuários, em um paralelo com o conceito clássico de meio ambiente, podemos notar que ambos (espaço físico e digital) necessitam da devida compreensão de uma série de variáveis, como econômicas, históricas e até mesmo culturais, o que nos permite compreender de forma mais clara a construção de um conceito em torno de um meio ambiente digital, da mesma forma como hoje já existe a ideia de um meio ambiente cultural.
Celso Antonio Pacheco Fiorrilo, em sua obra, já fazia referência ao reconhecimento do chamado meio ambiente digital, a saber:
[...] meio ambiente digital é indiscutivelmente no século XXI um dos mais importantes aspectos do direito ambiental brasileiro destinado às presentes e futuras gerações. Trata-se de um direito fundamental a ser garantido pela tutela jurídica de nosso meio ambiente cultural principalmente em face do abismo digital que ainda vivemos no Brasil.
Ainda com relação à ideia de um meio ambiente digital, o professor Ricardo Silva Coutinho, em artigo publicado em 2014 na Revista Brasileira de Meio Ambiente Digital e Sociedade da Informação, define esse espaço como a:
[...] manifestação da criação humana e parte integrante do patrimônio imaterial, sobretudo representado pela tecnologia do espectro eletromagnético (ondas de rádio, TV, celular e internet), deve estar a serviço do desenvolvimento sustentável e, portanto, tem que considerar o imperativo de proteção ambiental.
É interessante notar que, na construção de seus respectivos conceitos, tanto o professor Fiorillo, quanto o professor Coutinho, fazem questão de ressaltar a importância da tutela jurídica ambiental sobre as relações humanas constituídas no espaço digital, uma vez que o meio ambiente digital e todas as inovações tecnológicas que o compõem estão inseridos dentro da ideia de um patrimônio cultural assegurado constitucionalmente, com inegável importância sob o ponto de vista tecnológica na vida das pessoas.
Pode-se afirmar, portanto, que o espaço digital representa uma faceta mais moderna dentro do campo do meio ambiente cultural, cuja definição encontra esteio na base principiológica ambiental, definida expressamente na inteligência do art. 225, parágrafo 1º, incisos I, III e VII, da Constituição Federal, bem como no supracitado art. 3º, inciso I, da Lei n.º 6.938/81, revestindo, de proteção constitucional, a evolução tecnológica e os benefícios trazidos por ela no que diz respeito à velocidade da transmissão de dados, da sociedade da informação, e da própria evolução das comunicações. Não é por acaso, por exemplo, que a internet foi elevada a status de serviço essencial, nos termos do artigo 7º, inciso IV, da Lei n.º 12.965/14, o Marco Civil da Internet, e reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um Direito Humano, nos termos do art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos – a ONU já se manifestou no sentido que desconectar a população da internet representa uma violação do referido artigo, que protege o direito à liberdade de opinião e expressão.
Podemos compreender, diante de todo o exposto, portanto, que o meio ambiente cultural, que possui previsão expressa em dispositivos constitucionais, (a saber, os artigos 216 e 220 da CF), ao integrar-se à base conceitual prevista na Política Nacional do Meio Ambiente, a Lei n. 6.938/81, nos permite vislumbrar a construção de uma nova forma de meio ambiente, marcado pela transmissão de dados e informações por meio da rede mundial de computadores, promovendo uma revolução no campo da comunicação, constituindo um conjunto de influências, interações e condições humanas, da mesma forma como descrito no conceito clássico do meio ambiente natural, representando, assim, um local de livre manifestação de pensamento, criação, expressão, e informação, sendo vedadas quaisquer restrições indevidas, em conformidade com o mandamento constitucional.
Sendo uma faceta do nosso meio ambiente cultural, o meio ambiente digital divide as mesmas características que o permite classificar como um bem difuso e coletivo. Por isso mesmo, deve estar ao alcance de todos os cidadãos, ao mesmo tempo em que integra fundamentos como a sua abertura, participação e colaboração, nos termos do artigo 2º, inciso IV, do Marco Civil da Internet, sendo vedada quaisquer formas de discriminação ou marginalização àqueles que queiram acessar a rede mundial de computadores. Isso implica, porém, em reconhecer questões pertinentes à acessibilidade, e como implementar tais políticas no meio ambiente digital.
A ideia de acessibilidade digital está atrelada à eliminação de barreiras na internet. O conceito pressupõe que quaisquer sites ou portais sejam desenvolvidos de forma que todas as pessoas possam perceber, entender, navegar e interagir de maneira efetiva com seus conteúdos. Quando de sua aprovação em 23 de abril de 2014, o Marco Civil da Internet representou indubitavelmente um grande avanço no cenário jurídico nacional, vindo a somar à legislação de direito informático muitos recursos que passaram a permitir uma melhor governança dentro da rede mundial de computadores, definindo ainda a base para a construção de uma série de normas regulatórias sobre diferentes aspectos relacionados ao direito digital, como proteção de dados, empresas de inovação, crimes informáticos, etc.
Não só a Lei n. 12.965/14 passou a definir os fundamentos e princípios para o uso da internet no Brasil, como também trouxe um extenso rol de direitos dos usuários, em seu artigo 7º. Um deles merece especial destaque, em razão do que se lê no inciso XII do referido dispositivo, ao definir como sendo um direitos dos usuários a “acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, nos termos da lei”.
Por meio desse direito, o Marco Civil da Internet buscou conformar o fundamento da abertura e participação da internet, estabelecendo como meta de empresas de tecnologia, desenvolvedores e provedores de aplicações, a responsabilidade pelo desenvolvimento de ferramentas de acessibilidade para portadores de necessidades especiais, sejam físico-motoras (como paralisias), sejam sensoriais (visão parcialmente ou completamente comprometida).
Dentro da ideia de um meio ambiente digital, o conceito de acessibilidade não nos parece estranho, uma vez que, se revestido das mesmas características do meio ambiente natural, detém os mesmos elementos de um direito difuso e coletivo, não sendo possível vislumbrar, como já dito, qualquer tipo de discriminação por parte dos usuários. Do ponto de vista teleológico e constitucional, o professor Fiorillo corrobora o fato de que o meio ambiente digital precisa necessariamente ser observado à luz dos direitos fundamentais, ao afirmar que:
[...] a cultura digital deve ser interpretada com a segura orientação dos princípios fundamentais também indicados nos artigos 1º a 4º da Constituição Federal. Dessa forma, precisamos estabelecer a tutela jurídica das formas de expressão, dos modos de criar, fazer e viver, assim como das criações científicas, artísticas e, principalmente, tecnológicas, realizadas com a ajuda de computadores e outros componentes eletrônicos, observando-se o disposto nas regras de comunicação social e demais meios de comunicação existentes no século XXI, conforme assegura a Constituição Federal nos artigos 220 e 224. [...] O pleno exercício dos direitos culturais assegurados a brasileiros e estrangeiros residentes no país são amparados pelos princípios fundamentais da Constituição Federal.
Se considerarmos, portanto, que o acesso à internet i) é um direito humano, ii) é um direito difuso e coletivo, iii) um serviço essencial, iv) reveste-se das mesmas características do meio ambiente como conhecemos à luz da Lei n. 6.938/81, e v) tem sua acessibilidade garantida por força da Lei n. 12.965/14, em seu artigo 7º, inciso XII, podemos concluir que garantir o acesso à internet de todos os cidadãos, com ou sem necessidades especiais, é condição sine qua non para a persecução da dignidade da pessoa humana.
Ainda na esteira do pensamento de Fiorillo, o meio ambiente digital é sem sombra de dúvidas, no século XXI, “um dos mais importantes aspectos do direito ambiental brasileiro destinado às presentes e futuras gerações”. A importância dada a esse novo meio, e a urgência em se garantir a acessibilidade em todos os níveis, se dá em face “do abismo digital em que ainda vivemos no Brasil", nas palavras do autor. Para compreender a dimensão de tal ponderação, é preciso entender que a dignidade da pessoa humana abrange uma enorme gama de valores, bem como o reconhecimento e a garantia de direitos de liberdade e dos direitos fundamentais de um modo geral, representando uma qualidade intrínseca do ser humano, que demanda a cada um de nós um tratamento justo e equânime por todos, pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado. É o reconhecimento de tal dignidade que nos protege contra abusos e violações, e ao mesmo tempo harmoniza as relações humanas em uma sociedade. Não é diferente com a convivência nos espaços digitais na sociedade da informação.
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